Carta do Des. Pedro Valls Feu Rosa – Presidente do TJ/ES, publicada no site do Tribunal: www.tjes.jus.br, na data de hoje.
“ CHEGA DE INSANIDADE
Quero convidá-lo a um exercício mental. Comece imaginando uma penitenciária que não tenha guardas - nem armados, nem desarmados. Pense nos próprios presos tomando conta das instalações, de forma absolutamente ordeira!
Tente conceber, em seguida, que as chaves das celas fiquem permanentemente em poder dos próprios presos - que sejam eles a abrir e fechar as portas de forma absolutamente responsável. Agora respire fundo e tente visualizar a cena de detentos escoltando outros - algemados, se necessário - rumo ao Fórum para alguma audiência.
Para os casos de indisciplina, construa mentalmente uma comissão de presos julgando e penalizando seus companheiros com absoluto rigor. Acrescente uma pitada de pimenta nesta ideia: que cada caso seja devidamente registrado em um imenso quadro, para que todos saibam a quantas anda o comportamento dos apenados.
Tente, em seguida, imaginar celas quase que perfumadas, absolutamente limpas, sem um risco sequer nas paredes, com toda a roupa de cama dobrada e impecável sobre o colchão. E isto - faça um esforço para imaginar - graças a uma inspeção semanal realizada pelos próprios presos. A cela vencedora ganha regalias e a menos organizada, além de perdê-las, hospeda durante a semana seguinte um simpático e simbólico porquinho de porcelana.
Neste presídio - dê asas à sua imaginação - toda a alimentação é preparada pelos próprios presos, que comem dignamente com talheres normais. Também são eles a lavar os pratos e manter impecavelmente limpa a cozinha. Pense em uma comida de excelente qualidade, saboreada todos os dias, salvo no jantar de domingo - faz-se jejum para que os alimentos sejam doados a alguma família necessitada. E tente conceber a cena de presos reunidos fazendo uma oração antes de cada refeição.
Para não facilitar demais as coisas, acrescente à sua imaginação uma disciplina rígida, com muito mais regras que as de qualquer outro presídio comum - que ali a lei seja cumprida em todo o seu rigor. Que sejam obedecidos, impiedosamente, os horários de trabalho e estudo.
Aliás, falando em trabalho, que tal sonhar com presos trabalhando na confecção de peças de carros, sandálias, confecções etc. E sonhe grande - que as peças de carro, por exemplo, sejam vendidas para grandes montadoras!
A meta seguinte é tentar criar a cena de presos com suas próprias roupas civis, sempre limpas, identificados apenas por crachás. E que as roupas sejam lavadas por eles mesmos. A propósito, para manter a disciplina, some a este projeto mental que, se um preso lavar a roupa do outro, estará cometendo falta grave, pela qual todos pagarão.
Fiz uma experiência: perguntei a dez amigos o que achavam de uma prisão funcionando assim. De todos, sem exceção, ouvi que tratava-se de uma insanidade, uma ideia de realização impossível.
Pois é. E esta prisão existe e funciona assim - não lá no Japão, na Suécia ou na Dinamarca, mas aqui no Brasil mesmo. Em Itaúna, Minas Gerais. Há alguns dias estive lá, em visita oficial, constatando ser realidade tudo o que acima descrevi.
Aos incrédulos, apresento alguns números deste projeto, que funciona há 15 anos. Começo pelos índices de reincidência - no mundo, 70%; no Brasil, 80%; e, nesta prisão, 8,2%. Construir uma penitenciária comum para 320 presos custa, em média, R$ 35 milhões - esta custa apenas R$ 2,2 milhões para 200 deles. A despesa mensal com cada detento em uma prisão convencional fica entre quatro e cinco salários mínimos - contra apenas um e meio nesta.
Evasões? Há 10 anos não se sabe o que é isso lá. Tortura? Violência física? Zero! E em 37.881 saídas sem escolta policial, ao longo de 15 anos, apenas 8 presos não retornaram.
Enquanto isso ficamos aqui, com prisões que mais se parecem universidades do crime, mergulhadas em uma rotina tenebrosa de denúncias de violência, tortura e corrupção. Pense no estrago que elas fazem na vida dos presos - e na dos agentes penitenciários. Calcule, serenamente, o nível de embrutecimento e dor imposto a ambos, para considerar em seguida que o resultado estará em pouco tempo ao seu lado, nas mesmas ruas que sua família percorre.
A solução, que vi em Itaúna, é simples: seriedade, disciplina baseada em comportamento coletivo e muita religião. Só isso, e nada mais do que isso. Acrescento, inclusive, que o rigor da disciplina vai até além do preceituado pela Lei das Execuções Penais - assim como o nível das recompensas decorrentes do bom comportamento.
Como brasileiros, não costumam apreciar soluções brasileiras, este projeto nasceu em um berço de dificuldades. No caso de Itaúna, o Juiz de Direito da Comarca foi obrigado a dar a própria residência em garantia de um empréstimo para a associação que construiu o presídio. Aliás, a vitória foi obtida a um alto custo pessoal: este Magistrado abriu mão de sua carreira - poderia estar no Tribunal de Justiça já há vários anos - para cuidar pessoalmente deste projeto.
Mas valeu! Hoje já são 35 unidades em Minas Gerais, uma rede prestes a ser bastante ampliada, conforme prometido pelo Poder Executivo, em parceria com o Poder Judiciário.
Que tal meditarmos sobre isso? Não seria a hora de pensarmos em soluções locais para nossos problemas? Até aqui temos importado a ideia de prisões imensas, desumanizadas, caríssimas - nosso sonho é ver chegar ao Brasil a primeira “Supermax”, símbolo do sistema penitenciário norte-americano.
Tem dado certo, esta ideia que importamos dos EUA e Europa? Nem aqui, nem lá! Quer se fale em custos ou índices de reincidência, a ideia brasileira é claramente superior. Há que ser estimulada, refinada e reproduzida pelo Brasil afora - talvez pelo mundo, pois desconheço uma única prisão de qualquer outro país que possa apresentar números tão vistosos após 15 anos de funcionamento.
A verdade é que temos que interromper o ciclo de insanidade que atormenta nossas prisões.
A população não merece gastar quatro salários mínimos mensais por preso quando apenas um e meio bastaria - e muito menos para receber de volta 80% de reincidentes, quando 8,2% seriam possíveis.
Os agentes penitenciários não merecem passar suas vidas em um cenário permeado pela violência, sufocando suas almas e afetando seus lares - muitas vezes de forma irremediável.
Juízes de Direito e Promotores de Justiça não merecem, igualmente, a rotina triste de apurar e julgar denúncias sem fim de tortura e corrupção em um sistema penitenciário cujos contornos escandalizam qualquer pessoa de bem.
Estivemos, naquela visita, eu, o Secretário de Estado de Justiça e Cidadania, representantes do Sindicato dos Agentes Penitenciários e colegas responsáveis pela área de combate à tortura e execuções penais. Saímos todos desconcertados.
Nossa despedida foi um coral de músicas religiosas apresentado pelos presos. Ali vimos cantando - muitos com lágrimas escorrendo pela face - não assassinos, estupradores ou ladrões, mas, antes de tudo, seres humanos em uma caminhada rumo à verdadeira ressocialização.
Quantas vidas serão poupadas e quanta dor evitada, se conseguirmos reduzir os níveis de reincidência de 80% para 8%! Tente calcular quantos assaltos deixarão de ocorrer, quantos homicídios não serão cometidos! E quantos estupros não serão praticados! Uma das pessoas salvas poderá ser você, ou alguém de sua família...
Tenho, à frente do Tribunal de Justiça, adotado ações firmes contra a insanidade do sistema penitenciário. Tenho, sem temor, clamado pela necessidade de rompermos com o ciclo de denúncias que o cerca. Afirmo, sem medo de errar, que o sistema atual complica mais do que resolve, e nele simplesmente não há solução possível.
Espero, e coloco formalmente o Tribunal de Justiça à disposição para esta caminhada, que possamos em breve, de mãos dadas com o Poder Executivo, saudar a aurora da racionalidade e o sepultar da insanidade em nosso sistema penal.
Mudar um quadro desses não é tarefa possível de ser completada em um ano. Nem em dois. Talvez leve mesmo uma geração. Mas há que ser dado o primeiro passo. Vamos lá?
Pedro Valls Feu Rosa
Presidente do Tribunal de Justiça”
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