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quarta-feira, 30 de março de 2011

ADVOCACIA COMO APRENDIZADO

Houve uma época, eu diria uma das mais ricas de minha vida, pois foi nela que aprendi a advogar, que recém-formado, era nomeado defensor dativo para atuar perante os dois Tribunais do Júri então existentes, em defesa de réus pobres.

Época gloriosa, pois além de proporcionar um precioso aprendizado que não seria possível caso ficasse em meu escritório aguardando clientes, que nunca chegariam, colocou-me em contacto, de um lado, com advogados, juízes e promotores da mais alta expressão e que se tornaram grandes amigos, e de outro, com uma realidade apenas noticiada e até intuída, mas não vivenciada.

Refiro-me ao contacto que passei a ter com os réus carentes, que me puseram, por consequência, em contacto com o outro Brasil. O Brasil da miséria, das carências nos campos da saúde, da educação, do saneamento, da habitação, do afeto familiar, o Brasil das crianças abandonadas, da exploração dos menores, enfim do país em relação ao qual o outro país, culto, sofisticado, mas elitista, insensível, egoísta costuma dar as costas. Esse cruel e trágico contraste constitui, sem dúvida, um fator criminógeno de alta potência.

Pois bem, todos aqueles advogados que militaram no Júri como defensores dativos e os que ainda militam, como os defensores públicos, possuem perfeita noção da influência do meio como fator de crime. O contacto pessoal com os réus e com os respectivos processos nos possibilitou não só conhecer as condições materiais da vida de uma grande camada de nossa população, como perceber a incrível diferença existente entre os valores por eles cultivados e os das chamadas elites. Aliás, tal constatação se fazia pelo exame dos motivos e justificativas dadas pelos homicídios cometidos.

Enquanto nas classes mais abastadas se mata por cobiça, por poder, às vezes por ciúmes ou inveja, os menos favorecidos têm nas disputas mais estranhas e de difícil compreensão para nós as causas dos delitos. A defesa de valores aculturados pelo meio em que viveram em contraste com os valores que regem a vida nas cidades para onde migraram provocava não raras vezes altercações que findavam em morte. E a justificativa estava exatamente na violação daqueles princípios, também não poucas vezes eram questões de somenos que se transformavam em causas para matar na rígida e obtusa concepção desses acusados. Talvez se fossem julgados por jurados da mesma origem e cultura outros seriam os veredictos, que via de regra eram condenatórios.

Hoje talvez a realidade seja outra em face dos inúmeros instrumentos de integração, tais como a televisão e a Internet, a rapidez das informações, fatores que facilitam o processo de assimilação cultural, mas há trinta anos o deslocamento migratório era indiscutivelmente importante fator criminógeno.

Lembro-me do meu primeiro defendido, de alcunha "Lilico", acusado da prática de homicídio por ele negada com veemência. Já na primeira entrevista deu-me clara noção do seu abandono na prisão, pois pediu-me uma escova de dentes, uma pasta e uma toalha. Necessidades básicas, não supridas por seus familiares, possivelmente nem os tinha, e nem pelo Estado. Bem se vê o grau de abandono, de carência, de uma vida sub-humana a que estavam submetidos os clientes do sistema penitenciário. Essa situação, nos dias de hoje, agravou-se, pois o sistema não melhorou e os níveis sociais do país não se elevaram.

Merece registro o pedido feito pelo meu primeiro cliente, não só pelo seu significado social, como pelo efeito que produziu em meu casamento. Explico: dos produtos de higiene que me foram pedidos pelo Lilico, comprei a escova e a pasta. Quanto à toalha, peguei uma de casa, sem atentar para a sua qualidade. Minha mulher ao saber ficou furiosa, pois eu pegara exatamente a toalha que compunha um jogo finíssimo que fazia parte do nosso enxoval. Éramos recém-casados. Até hoje sou cobrado pelo meu desprendimento exagerado.

Ao evocar o meu início profissional, ocorre-me uma passagem do soberbo livro "Noturno da Lapa" do escritor e jornalista Luiz Martins. Ao explicar a influência que o boêmio bairro carioca exerceu sobre a sua personalidade, em especial sobre a sua visão da vida e dos homens afirmou : "A prostituição foi o primeiro aspecto da miséria humana que conheci" Segundo se infere a prostituição teria lhe provocado os sentimentos da piedade, da ternura e da complacência "com o pecado". Ademais arrematou dizendo ter entrado para o socialismo pela porta noturna de um "bordel".

Posso afirmar sem medo de erro a analogia de minha experiência profissional inicial com a experiência lapeana de Luiz Martins. Eu tornei-me mais compreensivo e mais complacente com o homem acusado da prática de crime, quando passei a frequentar a cadeia, pois o crime foi o meu primeiro contacto com o lado sombrio da condição humana. Se não me tornei um socialista na acepção ideológica do termo – ou será que me tornei? - passei a olhar a sociedade além dos estreitos limites do meu mundo pequeno burguês e a ver na política um instrumento adequado à redução substancial das desigualdades sociais, bem como de realização do humanismo e da dignidade do homem. Passei a entender que a atividade política só se justifica se ela estiver a serviço de valores superiores, todos eles ligados ao aperfeiçoamento da condição humana e da vida do homem em sociedade.

A advocacia criminal, especialmente aquela dedicada aos réus pertencentes às camadas mais humildes da sociedade, é uma forma de atividade política, na medida em que o advogado leva a um dos Poderes do Estado, como porta-voz do acusado, os direitos e as garantias concedidos pelo ordenamento e luta pela sua prevalência. Por paradoxal que pareça, é necessária uma imputação criminal para que direitos e prerrogativas sejam reconhecidos a alguém que passou a sua vida à margem das normas de proteção outorgadas a todos os cidadãos, mas aplicadas apenas a alguns.


*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado.



















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